Tudo a que se pudesse chamar vasilha, recipiente, contava.
Fossem cântaros, infusas, baldes, caldeiros; de barro, de lata, de plástico.
Com asa, com asas, com pegas, sem pegas, eram postos a partir da fonte do Adro e alongavam uma fila até ao cimo da rua Nova na esperança de que, da torneira, a água brotasse.
Uma manhã houve até em que todo o chão apareceu pejado de cacos. Artistas que interpretaram mal o “a partir”.
As mulheres que não tinham filhos disseram que, quem quer que fosse, precisava as mãos cortadas.
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Se recuarmos aí coisa de sessenta anos a uma tarde como esta, de um domingo de torrina, aqui em Alpalhão, onde é que se poderia encontrar a cachopada? A parte masculina da cachopada?
Os mais afoitos, num pego do Figueiró ou do Sor, pinachos, refrescando-se e desentranhando a peteira criada nos meses de Inverno. Um atado de vimes cortados das margens do charco ganhava o estatuto de bóia e a retouça assustava toda a tarde rãs e cobras-de-água. No fim, os corpos mostravam os sinais de quão grande era a pândega que tinham proporcionado às sambexugas.
Outros recorríamos ao Tanque da Quinta, bem mais perto da vila. Indo ali pelo Boqueirão, até lá, era um pulinho. O tanque assentava sobre um quadrado de chão em rocha natural, de um granito dente-de-cavalo, pior que lixa-grossa para a pele dos pés. Mas como a cavalo dado não se olha o dente, por lá chapinhávamos alegres e barulhentos. Até que aparecia alguém com um baralho-de-cartas meio-sebentoso que armava banca à sombra das laranjeiras; os banhistas tornavam-se chegadiços, a algazarra passava do tanque para o chão alisado a servir de mesa de batota, que, se havia cartas, competia haver barulho e, umas vezes ao montinho, outras ao zé midões, lá nos íamos reciprocamente rafando até à hora em que a canícula abrandasse.
A Quinta em tempos foi comprado por um homem de fora que, como mostram as fotografias do meu amigo NÉNÉ, entre outros benefícios, reparou o tanque dando-lhe um ar menos tosco. Não sei se lhe cimentou o chão culpado das nossas topadelas.
Mas já não há rasto do Casino das Laranjeiras..
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Quem, há cinquenta anos, calhásse a passar à tarde por Alpalhão, muito distraido seria se não désse com uma estranha força centrípta que atraía para a vila as nossas carroças arrastando, presas às taleiras, duas ou três vacas de amojos repletos baloiçando entre as pernas desmesuradamente abertas. Vivia-se o tempo da vaca-leiteira, quando os fazendeiros trocaram a sua já pouca liberdade por uma escravidão que não lhes deixava domingos nem dias-santos. De férias, nem falemos.
Todos os que vinham das courelas do Picoto, da Da Pipa, da Da Lama, aproveitavam a Fonte de Baixo para que os animais bebessem à vontade água tão fresca quanto podia ser a daquelas torrinas de Verão.
É da Física que dois corpos não podem ocupar ao mesmo tempo a mesma porção de espaço; daí que aqueles ventres ressequidos, ao empanturrarem-se de água boa se aliviassem de formidáveis presentes de esterco que tornavam o chão ao redor da fonte numa cordilheira de bostas altas, redondas,fumegantes.
No ano de 1965, na minha rua, alguém se lembrou de arremalhar um entretimento para irmos à água-nova à Fonte de Baixo. Coisas da tá Piedade, mulher reinadia, mangadeira, sempre a magicar pilhérias e risadas.
Era a marcha dos Palheirões. Palheirões é anexim, porque a rua é a dos Pelames mas, cá na vila, até as ruas têm alcunhas.
Na dianteira, as mulheres que andavam de bombo. De saias que, de subidas por contornarem as barrigas rotundas, morriam bem acima dos joelhos. Mulheres tão adiantadas de grávidas que, no mês a seguir, já havia gente-nova nos Palheirões. Depois, eu e os sapateiros que trabalhavam na oficina do meu pai soprando gaitas-de-cana: um palmo de cana larga furada por buracos em linha, uma incisão a fazer de bisel e um dos topos tapado com tripa de vaca surripiada da sachina do meu avô Alguém. As mulheres mais velhas vinham atrás esganiçando-se, cada uma com seu gral para marcar o compasso.. Os cachopos pequenos no fim, a arremedarem-nos nuns minuetes como se soprássem pífaros imaginários.
E aí parte a charanga a caminho da Fonte. Calássem as mulheres o “Oh mê Sã Joã Batista , ai oh mê Batista Joãã”, dessem descanso aos almofarizes, e não restaria mais que uma zoada de piparrãs que nem as corujas da Torre do Relógio assustaria.
Atrevêmo-nos pelo meio da vila e, quem estava à porta a gozar o fresquinho, uns sorriram, outros fizeram mangação. Mas nós, muito compenetrados, continuámos naquele alarido pela descida suave que leva ao chafariz, orgulho local, todo ancho dos seus granitos antigos, trabalhados, com carrancas, as armas-reais, mas, naquele tempo, sem umas luzes, uns candeeiros decentes que, à noite, lhe dessem o merecido realce.
Com o pequeno terreiro à pinha, a nossa folia esmerou-se mais na compostura, todos bem alinhados numa disposição quase marcial, com um convicto bater-de-pé para acentuar bem o compasso.
Só que, no entusiasmo da melodia, na intenção de bem impressionar os bebe-águas, o meu pé direito, vigoroso, foi pisar mesmo no centro da mais descomunal e húmida bosta com que, alguma vez uma vaca alpalhoeira se deve ter consolado, levantando um grosso e avantajado repuxo de estrume que me deixou num estado tão lastimoso como outro não houve na minha vida profissional, muito mais propícia a desditas destas do que numa arruada que se queria musical, em noite de S. João.
Autor: JCaldeira Martins
Fotografia: Joaquim Manuel Loução – NÉNÉ