A fundação da capela de Santa Ana dos Montes do Duque e Arneiro (Nisa)

A fundação da capela de Santa Ana dos Montes do Duque e Arneiro (Nisa) – 1758[1]

(Reedição melhorada)

 

Nos Montes de Baixo[2] o Sol já se escondera, a noite estival já se aproximava, as luzinhas tipo pirilampo acomodadas na recém-construída granítica escadaria já bruxuleavam, quando, perante numerosa assistência, se procedeu à inauguração, com os habituais e solenes discursos oficias, da requalificação do amplo espaço fronteiro à Igreja Matriz da Paróquia e Freguesia de Santana, sita no Arneiro, como se regista em lápide descerrada na altura[3], e a festa, pois também se tratava de uma festa, entrou na noite em alegre convívio acompanhado de acordes musicais e, no dizer da linguagem corrente, com “comes e bebes[4].

Era, no calendário, Sábado, 30 de Julho de 2022.

Decorridas três semanas (dias 19, 20 e 21 de Agosto)[5], o Largo recém-requalificado sob a responsabilidade e a expensas da Câmara Municipal de Nisa já acolheu como habitualmente, mas com maior brilhantismo e dignidade, os tradicionais festejos anuais em honra da Santa, orago e patrono da Paróquia e Freguesia, Santa Ana, os quais tinham estado interrompidos durante dois anos por causa da pandemia do Covid 19.

Neste ano de 2023, o calendário de parede editado pela Junta de Freguesia de Santana contempla em fotografia, a fazer jus ao melhoramento, a Igreja e o Largo.

O referido espaço era, antes desta requalificação, de terra batida e assim estava desde a construção da actual Igreja em meados do século passado, anos sessenta,[6] para cuja edificação foi derribada no local uma capela que, segundo Motta e Moura, fora fundada por Manuel Lopes e o seu filho, o padre Domingos Lopes, no ano de em 1772:

“Tem esta freguesia mais a capella de santa Anna nos montes debaixo, que foi fundada por Manuel Lopes, e seu filho o padre Domingos Lopes no anno de 1772, que tem também um pequeno cemitério contiguo, que os vizinhos da povoação fizeram à sua custa no anno de 1849”[7] [8]

Porém nós já provámos documentalmente que a fundação apontada por Motta e Moura para o ano de 1772 não estava correcta, pois onze anos antes, em 16 de Novembro de 1761, a capela já existia[9].

Neste dia realizaram-se dois casamentos “… na capella de Santa Anna dos montes Duque e Arneiro desta freguesia de S. Simão …” conforme escreveu o vigário Fr. Francisco Duarte Caveira, o sacerdote que oficiou os matrimónios, no respectivo livro de registo de casamentos[10].

Desconhece-se se antes de 16 de Novembro de 1761 houve na capela baptismos ou óbitos que, porventura, pudessem recuar a data, todavia os registos mais antigos destes ofícios são, respectivamente, de 1835 e 1859.

Anote-se que o sacerdote designa o templo por “capella de Santa Anna dos montes Duque e Arneiro”.

Ir-se-á compreender esta designação pois trazemos um novo e importante documento para a história da citada “capella de Santa Anna dos montes Duque e Arneiro” e das gentes dos Montes de Baixo.

Não o reproduzimos/transcrevemos na íntegra por falta de espaço, mas fazemo-lo em linguagem livre actualizada em linha contínua, respeitando a pontuação do original, no que consideramos essencial para dar a conhecer pormenores da fundação da capela e o espírito gregário dos seus fundadores. Indicamos aqui a mudança de linha no original com um traço oblíquo / e a mudança de fólio com dois //.

“Escritura de composição e conformi/dade que fez Manuel Lopes Riscado do lugar do/ Duque e os moradores do dito lugar e junta/mente os do lugar do Arneiro termo desta vila.

Saibam quantos este público instrumento de es/critura de composição e amigável conformida/de (…) / que sendo no ano do Nascimento de Nos/so Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e cinquen/ta e oito anos aos vinte e três dias do mês de Fevereiro/ do dito ano em casas de morada em que vive Manuel/ Lopes Riscado aonde eu tabelião fui chamado ao sítio/ do lugar do Duque estando ele aí presente e todos os/ moradores do dito lugar e bem assim estando também/ presentes todos os moradores do lugar de Arneiro tudo ter/mo da muito Notável Vila de Nisa e todos pessoas reco/nhecidas de mim tabelião que dou fé serem todos os pró/prios aqui conhecidos e declarados dos ditos lugares/ moradores. E logo pelo dito Manuel Lopes Riscado e/ pelos moradores dos ditos lugares por todos juntamen/te e por cada um per si in solidum foi dito a mim/ tabelião na presença das testemunhas adiante nome/adas escritas e assinadas que eles uns com os outros/ estavam ajustados e contratados sem constrangimen/to de pessoa alguma senão de seus motos própri/os e livres vontades para serviço de Deus e bem comum/ das almas e por terem alcançado licença do Excelentís/simo Senhor Dom Frei João de Azevedo Bispo da cida/de de Portalegre desta comarca para o efeito de// de edificarem e fazerem uma capela com o títu/lo de Santa Ana à sua custa deles ditos outor/gantes nos limites dos ditos lugares e para efeito dela/ darem primeiro e em nenhum tempo alguns deles ditos/ outorgantes porem dúvida alguma a pagar e satisfa/ção da parte que lhes tocar com o custo que ficar a dita ca/pela como também para os ornamentos e fabrica/ e tudo o necessário Redeficação dela disseram eles/ ditos outorgantes obrigavam suas pessoas e todos os seus/ bens assim móveis como de raiz direitos e acções havidas e/ por haver aonde quer que achados forem porque todos/ disseram haviam aqui por obrigados a dita parte do custo/ que lhe tocar na factura da dita capela como também/ para todos os ornamentos necessários e reedificação de/la a todo o tempo e que não pagando sendo para nisso/ citados querem e são contentes de darem e pagarem a/ pessoa que na tal execução andar a duzentos reis por dia …[11]

Na escritura apenas são nomeadas as presenças de Manuel Lopes Riscado e, na parte que não transcrevemos, as testemunhas Francisco Lourenço e João Dias Belente, e o tabelião de notas e judicial que a escreveu, António Pires Sarzedas. Não é nomeado o padre Domingos Lopes.

Assinaram 27 pessoas, homens, das quais 21 de cruz. Assina em primeiro lugar, de cruz, Manuel Lopes Riscado. Logo por abaixo assina o padre Domingues Lopes Cardoso, filho do primeiro, e ambos fundadores da capela, no dizer de Motta e Moura. Foram os dinamizadores e assim se justificará serem os primeiros a assinar. Motta e Moura (1814-1874) não leu, certamente a escritura, e terá recolhido informações orais para a escrita (1852-1855) da sua obra e, assim, o erro no ano da fundação, porém não é caso único neste autor.

Interrogamo-nos acerca da escolha de Santa Ana para título (patrono) da capela a edificar e de não ser mencionado o lugar do Pardo, assuntos que poderão ser equacionados numa próxima oportunidade. Não será motivo único, mas o Pardo fica bastante afastado de Duque e Arneiro que são lugares contíguos.

Não temos a data da construção, conclusão da obra, mas temos o documento do ponto de partida, a escritura fundacional datada 23 de Fevereiro de 1758.

Nós, no tocante à escritura, somos obrigados a ficar por aqui, deixamos ao critério do leitor outras leituras/análises/interpretações.

A capela foi construída entre 1758 e 1761 e foi destruída dois séculos depois para no local se edificar a actual Igreja, como dissemos, porém, recuando no tempo a 1905 “a ermida de Santa Anna no Arneiro, está em adiantado estado de ruína”[12], e para que ela não caísse, o povo, os habitantes do Arneiro, Duque e agora também os do Pardo, mais uma vez se solidarizaram e às suas expensas, guiados pelo seu pároco, o dinâmico padre Joaquim Pereira Martins, também este um filho da terra[13], e a viver no Monte do Duque, o edifício foi restaurado, sofreu “reedificação” adentro do espírito expresso na mencionada “Escritura de composição e conformi/dade”, mas sessenta anos depois foi definitivamente deitado abaixo para dar o lugar à Matriz.

Note-se que enquanto Noticias de Rodam em 6 de Janeiro de 1905 escreve “ermida de Santa Anna no Arneiro”, o padre Joaquim Pereira no dia 14 do mesmo mês e ano regista um baptismo na “capella de sant’ Anna do Duque”[14] e assim continuará neste costume que já vem do passado (já assim se regista em casamento em 1835). Há discordância na designação – ermida e capela – e na localização – Arneiro e Duque. A Rua da Igreja aberta num antigo campo de sobreiros faz a divisão, segundo nos informaram, no sentido ascendente à esquerda é o Duque e à direita o Arneiro e a Igreja, assente sobre o terreno da antiga capela, está no Arneiro.

Porém, recordamos, os moradores do lugar do Duque juntamente com os moradores do lugar do Arneiro haviam ajustado e contratado “// de edificarem e fazerem uma capela com o títu/lo de Santa Ana à sua custa deles ditos outor/gantes nos limites dos ditos lugares (sublinhado nosso).

Nota: A imagem inserta no texto é a reprodução em tamanho reduzido do original (14×6 cm) da pagela/santinho de “Nossa Senhora da Boa-Viagem que se venera em Santana – Nisa” publicada em tons de azul ainda no tempo da antiga capela. Foge ao habitual, pois não tem no verso nenhuma oração. A Santa coroada tem como adereços uma grande rede de pesca, na mão direita ostenta um barco e no braço esquerdo acolhe o Menino também coroado, que tem nas mãos uma máquina do comboio (actualmente, na imagem de vulto patente na Igreja, está substituída por apetrejos de pesca.). Há uma clara e justa alusão à terra de pescadores e de ferroviários[15].

 

[1] – Na escrita do artigo não seguimos o estipulado no acordo ortográfico em vigor.

[2] – Designação dada aos Montes do Pardo, Duque e Arneiro.

[3] – Descerrada pela presidente da Câmara Municipal de Nisa – Maria Idalina Alves Trindade – coadjuvada pelos vereadores – José Dinis Samarra e José Leandro Semedo -, pelo presidente da Assembleia Municipal – João José Esteves Santana – e pelo presidente da Junta de Freguesia – Joaquim da Piedade Ferreira Carita.

[4] – Ver Alto Alentejo, 3 de Agosto de 2022, pág. 13 e https://cm-nisa.pt/index.php/imagem/noticias/349-noticias-2022/3072-inauguracao-do-largo-da-igreja-de-santana. Para conhecer os melhoramentos veja-se: https://www.cm-nisa.pt/index.php/imagem/noticias/349-noticias-2022/2784-requalificacao-do-largo-da-igreja-no-arneiro-em-conclusao (acedidos em 3 de Agosto de 2022).

[5] – Cf. Cartaz alusivo às festas.

[6] – Era pároco e aí residente o padre Belo. Foi o grande impulsionador e dinamizador da obra. Paroquiava também S. Matias para a qual se deslocava de mota.

Os santanenses, por sua vez, não se pouparam a meios e a sacrifícios para erguer o templo como nos contaram, entre outros, Olívio Mendes Ramalhete (já falecido, vítima do Covid 19) e a sua esposa Irene Rodrigues Boleta, moradores na Rua da Igreja em 30 de Setembro de 2021. Foi o espírito gregário na continuidade de outros tempos, como veremos, o incentivo, o estímulo e o cimento para a concretização do projecto.

O padre Belo, Francisco António Rosado Belo, que passaria a viver em data posterior no Crato, reuniu uma importante colecção de arte sacra, que, com a sua habitação, doou à Santa Casa da Misericórdia do Crato a qual com a dita doação fundou a Casa Museu Padre Belo.

[7] – Cf. MOURA, José Dinis da Graça Motta e, Memoria Historica da Notavel Villa de Niza, Typographia Universal de Thomaz Quintino Antunes, Lisboa, 1877, parte primeira, pág. 104.

[8] – A freguesia referida é a Freguesia de S. Simão. Os Montes de Baixo – Pardo, Duque e Arneiro – estavam, à altura, integrados nesta Freguesia, porém estas três povoações em 05 de Janeiro de 1959 foram desagregadas da Freguesia de S. Simão e constituíram no foro civil a Freguesia de Santana e em 07 de Março do mesmo ano é criada no foro eclesial a Paróquia de Santana. A dita capela de Santana sobe de estatuto e passa a ser a Igreja Matriz da novel paróquia, porém esta merecia um novo templo para Matriz e não a pequena e velha capela, ainda que renovada nos primórdios do século (1905-1906), e, assim, mãos à obra, derriba-se um pequeno e acanhado edifício, cujo sino tinha como suporte um sobreiro, e ergue-se um outro mais amplo e digno para acolher todos os paroquianos e fregueses com altaneiro campanário a dominar todo o casario, sacristia, baptistério, espaço próprio para albergar imagens de vulto relacionadas com a Paixão de Cristo e casa mortuária. Segundo informações orais a antiga capela tinha a porta diametralmente oposta à da actual Igreja e o cemitério ficava por trás e à direita.

[9] – Ver: MURTA, José Dinis, “São Simão – A história breve de uma freguesia do concelho de Nisa com 450 anos”, in Plátano – Revista de Arte e Crítica de Portalegre, n.º 2, Outono de 2005, pág. 85, artigo na íntegra – págs. 73-102.

Este meu artigo tem sido muito mal tratado. Porquê?

Na Junta de Freguesia de S. Simão não se encontra nenhum exemplar da citada revista, situação deveras anómala, pois, aquando do lançamento da revista em Nisa em 15 de Dezembro de 2005, foi adquirido pelo presidente da autarquia na altura cerca de uma dezena de exemplares para divulgação da sua terra natal e da História dos 450 anos da Freguesia. Há agora fotocópias do artigo mas entregues por mim.

Já tive necessidade de denunciar publicamente um autor, com conhecimento directo ao próprio, das cópias textuais que fizera do meu artigo em obra que ele editara, do plágio que cometera (veja-se Alto Alentejo, 13-Dez.-2017, p. 26).

Até a escritora Dr.ª Vera Sousa, com quem mantive acérrima crítica via email, que se viu constrangida a retirar conteúdos do seu sítio na Net, também utilizou fartamente “São Simão – A história breve …” na sua publicação Pé da Serra – Olhares no Tempo, Prolepsys, 2020.

São autores que não tiveram a hombridade de indicar o meu nome e o meu artigo, quer em cópias textuais, inclusive fotografia, quer em citações pontuais, quer nas bibliografias finais como, aliás, fizeram para outros trabalhos e autores numa total de falta de equidade de critérios. Fizeram uma apropriação indevida e abusiva do meu trabalho num flagrante desrespeito pelas mais elementares regras de educação e de direitos de autor. “O plágio é um furto” assim o escreveu o nisense Cruz Malpique.

[10] – Casamentos de José Pires, do Monte do Duque, com Maria Pereira das Naves, do Monte da Velada, freguesia de S. Matias, e também de Manuel Dias das Naves, do Monte da Velada, com Clara Dias, do Monte do Duque. Ambos, os matrimónios, foram realizados com autorização do Bispo. Cf. Arquivo Distrital de Portalegre, Paróquia de S. Simão, Nisa, Registo de Casamentos, livro 01, anos de 1739-06-01 a 1820-08-20, fl. 24, assentos 1 e 2. Estabeleceram-se relações familiares entre povos vizinhos.

[11]Cf. Arquivo Distrital de Portalegre, Notariais, Concelho de Nisa, Cartório Notarial de Nisa, 1º ofício, livro de notas 09, de 1757-07-28 a 1758-11-27, fólios transcritos 64v. e 65f. (parcial). Escritura na íntegra: fls. 64v.-66f.

A existência desta escritura foi-nos transmitida pelo Dr. Fernando Pina, técnico superior no Arquivo Distrital de Portalegre, que, adentro das suas tarefas arquivísticas, a localizara no citado livro. Expressamos também, aqui e agora, o nosso público agradecimento ao Dr. Fernando Pina.

[12] – Cf. Noticias de Rodam, n.º 1, 6 de Janeiro de 1905, pág. 4, cl. 3. Noticias de Rodam, quinzenário, foi o primeiro jornal impresso cujo editor, José Valério Nave, defensor dos ideais do partido Regenerador, e administração estavam sediados no concelho de Nisa, no Arneiro, contudo as notícias referentes ao concelho são escassas, a quase totalidade dos assuntos tratados são de cariz político, combate político centrado em Rodam – Vila Velha de Ródão. Terão sido publicados 51 números, o último em 15 de Agosto de 1907.

[13] – O padre Joaquim Pereira Martins era filho de Manuel Martins, natural do Chão da Velha, da freguesia de S. Matias, e de Maria Pereira, do Monte da Póvoa (actualmente desabitado), da freguesia de S. Simão. Maria José Pereira, irmã do padre, casou em 25 de Outubro de 1905 na Igreja Paroquial de S. Matias no Cacheiro, com João Cesário do Monte dos Matos. Foram autorizados a casar por licença do arcebispo-bispo da diocese pois entre eles havia laços de consanguinidade. Cf. Arquivo Distrital de Portalegre, Paróquia de S. Matias, Nisa, Registo de Casamentos, livro 11, de 1905-01-30 a 1905-10-25, assento 8, o último do livro, fls. 7f.-8f. Deste casal há descendência no Monte Claro e na Falagueira, freguesia de S. Matias. Atente-se na teia de relações entre os povos.

[14] – Cf. Arquivo Distrital de Portalegre, Paróquia de S. Simão, Nisa, Registo de Baptismos, livro 14, anos de 1905-01-14 a 1905-12-28, fls. 1v.-2f., assento 1.

[15] – Não podemos deixar de agradecer publicamente a oferta desta pagela à guardiã da chave da Igreja – Maria Manuela Pinto – que em 6 de Novembro de 2022 nos guiou amavelmente na visita ao templo. Bem haja!

 

Autor: José Dinis Murta